Normalmente apontado como um vilão do meio ambiente, o fogo tem sido cada vez mais usado para prevenir incêndios em unidades de conservação brasileiras.
Por meio de queimadas controladas feitas antes da estiagem, gestores de parques e comunidades tradicionais buscam reduzir a quantidade de material inflamável disponível, como capim e folhas secas.
A técnica vem sendo usada principalmente no Cerrado, mas já começa a ser aplicada em outros biomas, como o Pantanal e em formações savânicas na Amazônia.
O objetivo é impedir a ocorrência de grandes incêndios no auge da seca, quando fica mais difícil controlar as chamas e o fogo costuma ser bem mais destrutivo.
As queimadas são aplicadas em áreas diferentes de cada vez, para que os animais consigam fugir e a vegetação tenha tempo de se regenerar. Agentes monitoram as chamas para mantê-las baixas e evitar que escapem para outras áreas.
Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental federal, hoje 37 unidades de conservação federais no Brasil já realizam as chamadas “queimas prescritas”.
A técnica não é empregada em florestas tropicais, como a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica. Nesses ambientes, mais úmidos, o fogo não costuma ocorrer naturalmente e tende a provocar danos maiores.
Queima controlada na Estação Ecológica Águas Emendadas, no Distrito Federal — Foto: Governo do DF
“É uma quebra de paradigma”, diz à BBC News Brasil o coordenador de Prevenção e Combate a Incêndios do ICMBio, João Morita.
Ele afirma que, ao incorporar o fogo em suas políticas, o ICMBio conseguiu reduzir a incidência de grandes incêndios em unidades de conservação e atenuou conflitos com comunidades que dependem das queimadas para manter seus modos de vida.
O tema, porém, é controverso, e há várias iniciativas no país que buscam desencorajar o uso tradicional das queimadas por associá-las à degradação ambiental (leia mais abaixo).
Biomas íntimos do fogo
No Brasil, as queimas prescritas começaram a ser adotadas em 2014, no Cerrado. Desde então, foram incorporadas por quase todos os 15 parques nacionais nesse bioma.
João Morita, do ICMBio, diz que a prática já reduziu a incidência de grandes incêndios em locais como a Serra Geral do Tocantins, a Serra da Canastra (MG), a Chapada das Mesas (MA) e a Chapada dos Guimarães (MT).
Na Chapada dos Veadeiros (GO), que sofreu um grande incêndio em 2021, as queimas prescritas evitaram que as chamas chegassem às áreas de uso público, diz Morita.
Em 2017, a técnica passou a ser aplicada também em áreas de savanas semelhantes ao Cerrado na Região Amazônica, como no Parque Nacional do Viruá (RR), na Reserva Biológica do Guaporé (RO) e no Parque Nacional dos Campos Amazônicos (RO e AM).
E, em 2021, o método chegou ao Pantanal, um ano após o bioma sofrer incêndios devastadores.
Ali, a queima prescrita tem sido testada no Sesc Pantanal, a maior Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPNM) do país, e ainda neste ano deve ser aplicada no Parque Nacional do Pantanal Matogrossense.
Morita, do ICMBio, diz que as espécies vegetais do Pantanal têm 70% de similaridade com as do Cerrado, o que torna a queima prescrita uma possível ferramenta para combater os incêndios catastróficos que têm afetado o bioma.
Ele diz que os pesquisadores à frente dos testes no Sesc Pantanal devem finalizar nos próximos meses uma publicação científica sobre os impactos da queima na fauna e flora locais.
A se confirmarem os efeitos positivos, Morita diz que a técnica tende a ser expandida aos poucos para outras partes do bioma.
Pantanal teve incêndios devastadores em 2021 — Foto: AMANDA PEROBELLI/REUTERS
O ICMBio também tem auxiliado órgãos estaduais a implantar o método – é o caso do Parque Estadual do Juquery, última área protegida de Cerrado na Grande São Paulo.
O parque teve um grande incêndio em 2021 e deve começar a fazer queimadas prescritas neste ano, segundo Morita.
Há ainda a intenção de levar a técnica no futuro para unidades de conservação na Caatinga e no Pampa, segundo o gestor do ICMBio.
As queimas controladas também vêm ganhando espaço nos últimos anos em outros países que têm sido duramente afetados por incêndios, como o Canadá, os EUA, a Austrália e Portugal.
Tanto no Brasil quanto em alguns desses países, gestores de parques têm trocado experiências com povos indígenas e comunidades tradicionais, que há séculos manejam o fogo em territórios com grande biodiversidade.
Fenômeno natural
Nos biomas brasileiros onde o ICMBio realiza queimas prescritas, o fogo pode ser provocado naturalmente por raios, normalmente no fim ou no início da estação chuvosa.
Nessas épocas, há alguma umidade no ar e na terra, o que ajuda a controlar as chamas.
As queimas prescritas tentam replicar esse fenômeno natural. Por isso, costumam ser feitas antes do auge da estiagem.
“O incêndio no auge da seca tem uma propagação muito mais veloz e é muito mais cruel, quente e severo”, diz Morita.
“A queima prescrita é diferente: ela dá tempo aos animais se entocarem, fugirem ou voarem. Não é uma linha de fogo reta, porque queremos propiciar rotas de fuga”, afirma.
Além de reduzir o risco de incêndios na seca, ele diz que a queima prescrita busca criar um mosaico de paisagens que favoreça a diversidade de plantas e animais, já que cada espécie tende a preferir um tipo de ambiente.
Morita afirma que as queimas também têm sido usadas em unidades de conservação para eliminar plantas invasoras, como o eucalipto e o capim braquiária.
A função do fogo no Cerrado
No Cerrado, onde as queimas prescritas mais avançaram, a influência do fogo no ambiente é estudada há bastante tempo.
As chamas aceleram os ciclos ecológicos ao permitir a renovação da vegetação rasteira e quebrar a dormência de sementes, que podem enfim germinar.
As folhas tenras da rebrota alimentam mamíferos, e as flores em abundância atraem polinizadores.
Um artigo publicado em 2019 na revista Ecology abordou a velocidade com que o Cerrado se regenera após o fogo.
Liderado pela bióloga Alessandra Fidelis, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o estudo enfocou uma erva do Cerrado (Bulbostylis paradoxa, popularmente conhecida como “cabelo-de-índio”) que começa a florescer 24 horas depois da queima.
Imagem de satélite mostra o Parque Estadual do Juquery em 3 setembro de 2021, 12 dias após a ocorrência de um grande incêndio — Foto: Planet Labs via BBC
Em 23 de outubro, dois meses após o incêndio, o verde já começava a voltar à paisagem do Juquery — Foto: Planet Labs via BBC
Em março de 2022, sete meses após o incêndio, o verde já dominava o Cerrado do Juquery outra vez — Foto: Planet Labs via BBC
Outro sinal da influência do fogo no Cerrado são suas árvores com cascas suberosas (com textura de cortiça), raízes profundas e troncos subterrâneos – características que as protegem das chamas.
Quando fica muito tempo sem queimar, a vegetação do Cerrado tende a se adensar, o que reduz os habitats de plantas e animais adaptados a áreas mais abertas.
Morita diz que, no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (MT), por exemplo, há áreas que não queimam há mais de 25 anos, o que provocou o desaparecimento de algumas veredas.
Uma das formações mais típicas do Cerrado, as veredas ocorrem à beira de rios e nascentes e se caracterizam por uma vegetação rasteira, na qual se destacam palmeiras de buriti.
Segundo Morita, a ausência do fogo fez com que algumas veredas do parque fossem tomadas por arbustos.
“Claro que não vamos queimar todas as veredas, mas estamos reabrindo as veredas que estavam fechadas”, diz Morita.
Ele cita ainda os sinais da longa ausência do fogo em outro ponto emblemático do parque, a cachoeira Véu da Noiva.
Em 1827, a então chamada Cachoeira do Inferno foi pintada pelo francês Aimé-Adrien Taunay em meio a uma paisagem dominada por uma vegetação rasteira, com árvores restritas à mata ciliar.
Fotos atuais, porém, mostram que a área foi toda tomada por árvores e arbustos.
Manejo Integrado do Fogo
João Morita, do ICMBio, diz que a queima prescrita é uma das várias ações que compõem o Manejo Integrado do Fogo (MIF), política mais abrangente do órgão que regula o uso dessa ferramenta.
A política inclui outras técnicas, como o aceiro negro, quando se queimam faixas de vegetação para que sirvam de barreira à propagação das chamas.
O MIF também inclui a realização de pesquisas sobre efeitos do fogo no ambiente e acordos sobre o uso de queimadas com comunidades que vivam em unidades de conservação ou suas imediações.
Segundo Morita, muitas dessas comunidades “precisam do fogo para a manutenção de seus modos de vida”.
Queimadas são usadas, por exemplo, na coivara, técnica agrícola amplamente difundida entre povos indígenas e comunidades rurais brasileiras.
Nela, abrem-se clareiras na mata com o auxílio do fogo para o cultivo de alimentos. As roças são depois abandonadas até que a floresta se regenere.
Outro exemplo é um método usado no Jalapão (TO), Oeste da Bahia e Serra do Espinhaço (MG), onde comunidades tradicionais usam o fogo para acelerar a rebrota de espécies vegetais usadas no seu sustento, como o capim dourado e flores sempre-vivas.
Segundo o ICMBio, hoje 197 unidades de conservação federais, em todos os biomas brasileiros, trabalham de alguma forma com o Manejo Integrado do Fogo (MIF).
Incêndio florestal de grandes proporções na Califórnia, em agosto de 2021. — Foto: AFP
Em vários pontos do país, no entanto, há iniciativas que buscam eliminar as queimadas das zonas rurais.
Na Amazônia, por exemplo, órgãos que assessoram agricultores têm pregado a substituição das queimadas por técnicas nas quais folhas e galhos podados são mantidos sobre o solo até se decomporem.
Em entrevista à BBC em novembro de 2021, o agrônomo Osvaldo Kato, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, disse que o crescimento da população e a diminuição das áreas de floresta eram obstáculos à manutenção das queimadas tradicionais na Amazônia.
Segundo ele, “quando havia muita terra e menos gente”, era possível aguardar muito anos até que as áreas queimadas para a abertura de roças se regenerassem e voltassem a ser cultivadas.
“Mas não dá mais tempo de fazer isso”, afirmou.
Nesse cenário, segundo ele, é preferível adotar métodos agroecológicos, que dispensam o fogo e permitem cultivar uma mesma área ininterruptamente.
Além disso, segundo Kato, qualquer tipo de queimada injeta gás carbônico na atmosfera num momento em que a humanidade precisa cortar emissões para frear o aquecimento global.
Movimentos contrários às queimadas também têm crescido na Caatinga, onde o fogo frequente é apontado como uma das principais causas para a crescente desertificação no bioma.
A própria legislação proíbe o uso do fogo para suprimir vegetação exceto em situações pontuais, como em práticas de subsistência de comunidades tradicionais ou em queimas controladas em unidades de conservação. Em áreas privadas, realizar queimadas é ilegal a menos que haja autorização do órgão ambiental competente.
Área desertificada no interior de Alagoas, onde há campanha para reduzir uso de queimadas — Foto: ASCOM – GOV. DE AL
João Morita, do ICMBio, diz que, quando muito frequente ou mal empregado, o fogo de fato pode ser bastante nocivo. É o caso, segundo ele, das queimadas usadas para substituir florestas por pastagens ou expandir monoculturas (plantações de uma única espécie).
Esse uso do fogo empobrece o ambiente e deve ser reprimido, defende o gestor do ICMBio.
Mas ele contesta a associação entre qualquer tipo de queimada e o aquecimento global.
Morita diz que as queimas prescritas em ambientes de savana buscam eliminar principalmente o capim. E esse capim, quando incinerado, recupera 100% de sua massa em 18 meses, afirma ele.
Ou seja, todo o carbono emitido na queima é reabsorvido um ano e meio depois, segundo o gestor do ICMBio.
Por outro lado, diz Morita, quando incêndios ocorrem na estação seca, o fogo consome muitas árvores além do capim, gerando muito mais emissões.
Como ele afirma que incêndios vão continuar a ocorrer – sejam intencionais, acidentais ou naturais -, Morita diz que é preferível agir para limitar seus danos.
O gestor diz ainda que nem todas as comunidades em unidades de conservação têm condições de abrir mão do fogo para abrir roças. Nesses casos, segundo ele, é melhor ordenar o uso das queimadas do que reprimi-las.
“Não é todo mundo que tem um trator ou a possibilidade de receber tecnologias alternativas ao fogo para produzir alimentos”, diz João Morita.