Eterno na dimensão do futebol, daqui a um século as gerações ainda conversarão sobre o Rei
De Paris, França
Pelé está completando 80 anos. Eterno na dimensão do futebol, daqui a um século as gerações ainda conversarão sobre o Rei, muito embora a escassa documentação de seus feitos – comparada ao acervo de outros craques que eclodiram no começo do milênio –, o deixará em alguma desvantagem. Na esfera implacável da vida, porém, sabemos que Pelé é mortal. E, como acontece a todos nós, a morte vem flertando com Sua Majestade. Uma hora vai perder a cerimônia e levá-la de vez. Da mesma forma que ela nos sequestrará desse mundo de poucas glórias e muitos fracassos, Pelé também tem passagem comprada para embarcar nesse comboio. Quando morrer, o mundo não falará de outra coisa por dois dias. Nas redes sociais, muita gente dirá que o Brasil não merecia tamanha desdita.
Mas hoje tudo é festa, apesar do momento difícil que vive o mundo. Rebobinemos o filme para dar vez à pauta mundana. Pelé já tinha deixado a vida de atleta. Estava eu com dois amigos da Catalunha no restaurante Leopoldo, no Itaim Bibi, em São Paulo. Eram eles Enrique Maier e seu sócio, um homem corpulento e ansioso chamado Xavier Ribò que, naquela noite, destilava mil ressentimentos. Isso porque descobrira que a filha, de 22 anos, estava saindo com um sujeito que tinha sido seu colega de turma na faculdade, ele também com 46. Nada parecia aplacar aquele desassossego. Até que, de repente, ambos os convidados ficaram transfixados por alguma coisa, ou alguém, que cruzara o umbral da porta. Por instinto, já imaginei para onde correríamos se fosse um assalto. Mas felizmente, não era disso que se tratava.
Era simplesmente Pelé que entrava ali, distribuindo simpatia. Serviram-nos meus amigos de mais uísque e, ato contínuo, tudo mudou. Então era ele? Sim. Eu tinha certeza? Claro. E, agora, o que fazer? Calma, eu disse, temos tempo. Deixei a poeira assentar. Eles já tinham perdido a fome e se desesperavam por não ter trazido uma máquina fotográfica. Que estúpidos tinham sido. Será que a casa não dispunha de um fotógrafo plantonista para registrar o momento? E que pena não terem uma bola para o Rei autografar. A ansiedade tomou conta da mesa e vi que nada de bom poderia resultar da abulia. Era hora de agir.
Fui então ao balcão onde Pelé conversava com um amigo. Pedi licença e dei o recado: “Pelé, me ajude, cara. Estou com dois catalães aqui, desses que vão ao Camp Nou toda semana. Os caras sabem até a escalação do Cosmos onde você jogou. Avalie a do Santos. Dê uma passadinha na mesa, diga um oi, gaste lá 30 segundos e ficarei agradecido e aliviado”. Então indiquei onde estávamos. Ele pediu licença ao amigo e me puxou pelo cotovelo, a voz inconfundível: “É melhor a gente ir agora, depois vai ficar complicado, vai chegar muita gente”. Os catalães levantaram-se de olhos brilhantes com a coreografia bem executada e passaram talvez os dez minutos mais felizes de suas vidas. Nunca me deixaram de agradecer.
Pelos anos seguintes, se a hospitalidade em Barcelona sempre fora de primeira, o fator Pelé tornou-a melhor. Enquanto papeavam à mesa, um filme passava pela minha cabeça. A primeira vez que eu o vira jogar no Recife, numa partida entre Náutico e Santos, uma das poucas a que papai me levara. A vez em que eu estava em Acco, Israel, em 1976, e vi meninos jogando futebol a metros da pequena mesquita debruçada sobre o Mediterrâneo. Então, ao pedir a bola para fazer umas embaixadinhas, como forma de dar prova do máximo de virtuosismo a que podia me permitir, os meninos de fala árabe brincavam: “Belé, Belé”. Ah, e o depoimento clássico de Galvão Bueno: “Senna gostava de privacidade nos restaurantes. Já Pelé fica angustiado se passar mais de um minuto sem dar um autógrafo”. E o belo xote de Jackson do Pandeiro. “Quem é esse danado com a bola no pé, é o rei Pelé…”