Ao lidar com a Receita, Cid tomou providências que só podem ser feitas para itens com destinação pública. Já entre a equipe ligada ao gabinete presidencial, Cid tratou as joias como um presente pessoal destinado ao ex-presidente.
A análise dos depoimentos de testemunhas à Polícia Federal no caso das joias de R$ 16,5 milhões, enviadas pela Arábia Saudita e retidas pela Receita Federal, revela que o então assessor e braço direito de Jair Bolsonaro (PL), o tenente-coronel Mauro Cid, fez “jogo duplo” para reaver o conjunto milionário e destiná-lo ao então presidente.
Nos últimos dias de dezembro de 2022, no fim do governo Bolsonaro, Cid providenciou a documentação necessária para realizar um procedimento burocrático junto à Receita Federal que só pode ser feito em caso de bens com destinação pública – e não privada.
Esse procedimento era necessário para retirar o conjunto milionário da alfândega. Enquanto isso, no entanto, ele atuou internamente para que, uma vez que as joias saíssem da Receita, elas fossem para o acervo privado de Jair Bolsonaro.
O objetivo era obter a liberação de um conjunto de joias de R$ 16,5 milhões apreendido pela Receita com a comitiva oficial do governo brasileiro que havia viajado para a Arábia Saudita em outubro de 2021.
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Os itens foram encontrados na mala de um assessor do Ministério de Minas e Energia e não foram declarados à Receita como item pessoal, o que obrigaria o pagamento de imposto. Por conta disso, as joias acabaram retidas.
O conjunto valioso poderia ter entrado no Brasil sem o pagamento de imposto, desde que fosse declarado como presente para o Estado brasileiro, mas, neste caso, ficaria com a União.
O blog procurou a defesa de Mauro Cid, que não respondeu até a última atualização desta reportagem.
Veja, a seguir, como foi o “jogo duplo” de Cid com detalhes.
O jogo para a Receita
No dia 28 de dezembro, Cid assinou um ofício para realizar o procedimento burocrático de retirada dos itens da alfândega do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Esse tipo de procedimento – chamado de “incorporação”, no jargão técnico da Receita – só pode ser realizado para bens com destinação pública.
A “incorporação” pode ser feita para itens que forem considerados “em perdimento”, como mercadorias estrangeiras apreendidas que não tiveram os impostos aduaneiros pagos – caso das joias sauditas.
Não à toa, os vários servidores da Receita que foram acionados ao longo dos últimos dias de dezembro assumiram que o conjunto milionário seria destinado ao acervo público da Presidência da República. Por esse motivo, muitos deles expressaram incompreensão e incômodo com a urgência do pedido para realizar o trâmite burocrático de liberação das joias.
Um deles, por exemplo, afirmou à PF que o entendimento dele e de outros fiscais era que “como a destinação era o patrimônio público, não seria necessário aquele açodamento”.
O ofício assinado por Cid para fazer o procedimento de incorporação descreve as joias em detalhes (“conjunto de joias, colar, par de brincos, anel e relógio de pulso, conforme certificado de autenticidade Chopard”) e afirma: “Trata-se de pedido para incorporação dos bens abaixo descritos a este órgão da União”.
Cid enviou o documento ao então chefe da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, que o repassou a outros funcionários da Receita com os dizeres “solicito atender”.
Em seu depoimento à PF, Gomes afirma: “O ofício era muito claro no sentido de incorporação ao órgão público da Presidência da República”.
Ele explica ainda que “qualquer destinação que não fosse pública na modalidade incorporação seria juridicamente impossível”.
Ainda de acordo com Gomes, um dia antes, Mauro Cid o havia telefonado para saber quais medidas deveriam ser tomadas para “incorporação dos bens ao patrimônio do acervo público da Presidência da República”. Na ocasião, Gomes afirma que explicou a Cid o trâmite burocrático e a necessidade de se fazer um ofício.
À PF, Cid também diz que conversou com o então chefe da Receita sobre como deveria ser feito o documento para a retirada dos bens.
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O jogo interno
Enquanto isso, também ao longo dos dias 27, 28 e 29 de dezembro, Cid atuou internamente para que as joias fossem, na realidade, para o acervo privado de Jair Bolsonaro.
Como reportagem do g1 e da TV Globo já havia revelado, em depoimento à PF, o assessor subordinado a Cid na Ajudância de Ordens, o 2º tenente do Exército Cleiton Hozschuck, afirmou que ao longo dos dias 28 e 29 teve conversas de WhatsApp com Mauro Cid sobre o conjunto retido na alfândega.
Segundo Cleiton, nessas conversas, Cid afirmou que as joias iriam para o “acervo pessoal do presidente da República”.
Cleiton, por sua vez, contatou outra funcionária da Ajudância de ordens para adiantar a documentação necessária para concluir o trâmite de recebimento de presentes. Essa funcionária preparou um ofício que relataria a conclusão do processo.
Nele, ela disse à PF que escreveu que o “presente” havia sido transferido para a “posse do Presidente da República, como presente pessoal e não institucional”.
No formulário que acompanharia este ofício, ela escreveu ainda que “os itens encontram-se com o Presidente da República” – o que só poderia ocorrer se as joias fossem destinadas ao acervo privado da presidência.
A Ajudância de Ordens, no entanto, não era o órgão federal que poderia dizer se um presente enviado ao presidente seria considerado um bem público ou um bem privado. Essa atribuição é do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), como explicou o próprio Cid à Polícia Federal.
O então chefe do GADH, Marcelo da Silva Vieira, disse em seu depoimento à PF que no dia 28 de dezembro recebeu uma ligação de Mauro Cid.
Nessa ligação, Cid informou a Marcelo que no dia seguinte chegariam presentes destinados ao presidente da República e que ele, Cid, encaminharia informações “por meio eletrônico, inclusive o formulário de encaminhamento e respectivas fotos, para que fossem tratados pelo GADH, pois o presente físico seria entregue ao seu titular”.
Ou seja, Cid pretendia entregar as joias nas mãos do presidente ainda no dia 29 de dezembro – antes do embarque para os EUA, no dia 30 – e finalizar o trâmite burocrático exigido sem que o GADH fizesse a análise física do presente, o que contraria o procedimento correto.
Ainda segundo o depoimento de Marcelo, o fato de o presente físico ser “entregue ao seu titular” o fez acreditar que o presente seria verificado como “parte integrante do acervo privado presidencial”.
O fracasso da operação
A operação, no entanto, falhou em todas as frentes.
Ao longo dos dias 28 e 29 de dezembro, o corpo técnico da Receita analisou o ofício assinado por Mauro Cid e concluiu que seria impossível atendê-lo, porque a Ajudância de Ordens, órgão chefiado por Cid, não era a instância competente para fazer o pedido de incorporação, que deveria ser feito por outro órgão ligado à presidência, a Secretaria-Geral da Presidência da República. Assim, as joias permaneceram retidas.
Na noite do dia 29 de dezembro, como mostraram o g1 e a TV Globo, o tenente Cleiton, assessor na Ajudância de Ordens abaixo de Cid, aciona outra funcionária para que ela apague o documento preparado mais cedo, no qual constava a informação de que o presente era “pessoal” que já “estava com o Presidente da República”.
Em depoimento à PF, a funcionária confirmou que excluiu o documento.